POR ENTRE SONHOS PEDRAS E POESIA
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CAPÍTULO I
Matérias para fazer Sonhos.
Gemidos... suaves e intensos, duradouros na brevidade de seus segundos. Efêmeros e débeis na eternidade de sua brevidade... Revezavam-se entre si, num bailado ansioso que lembrava o ecoar das abas da gaivota enevoada na vazante do Capetinga. Não em qualquer vazante, mas naquela onde este Rio Capetinga recebe aquele Rio Roncador, num profuso encontro de generosidade e entrega. Aí, o Roncador que em seu curso vai banhando terras, morros e chácaras, matando sede, gerando vida, ofertando piabinhas e lambaris, entronca-se na mata densa de borda ciliar na altura da Carestia, em terras de Vô Pulú, Apolinário, na verdade e se faz um gerando doravante um caudaloso Rio Capetinga.
Vô Pulú é filho destes polacos goianos que descendem do polonês Szervinsk, que ali é lenda, é fábula, é gente... é mito. Não qualquer mito, mito vivo, mito fundador, mito de gênese e de escatologia, de eternidade na efemeridade da descendência.
Mas olha, esse mito é coisa enganosa e encantante, está lá, mas não se pode vê-lo, e quando se vê, é bem pouco, oculto, diluído.... Na pele? Não! Na pele bem, pouco. Nos zóios vez ou outra, num colorido aclareado em tom esverdeado ou de matiz azul. No cabelo de quando em vez, quando em pálido melaninar, se dá um aloreamento pueril que poucas vezes dura até a idade adulta...
Nas práticas? Hiii... aí é que num vige mesmo! Pois a prática é sertaneja, misturada de paulista, mineiro e baianos. Feito receita de bruxaria. Tudo jogado no mesmo escaldante caldeirão do Sertão, onde a bruxa e mãe da receita é a própria natureza e o pai zeloso, o bruxo pai Cerrado. Eles gestam essa descendência, nas além do nome e do mito na mente, além do já dito, não resta nada. Senão fascínio, encanto, poesia e curiosidade.
Mas bem, falava eu antes de pegar o atalho, da semelhança entre aqueles gemidos e o bater das asas da garça branca, visitante temporona daquela várzea de entre rios.
Aqueles gemidos, não eram de dor, não eram de angústia, não eram de prazer... Eram uma mistura de tudo isso, ritmado, num frenesi intenso que de quando em vez, estancava-se numa estática transitória para depois, em seguida continuar sua ritmância... Que era aquilo? Insistentemente eu me perguntava.
Ora, nem mesmo sei se fora realidade, ou devaneio, alucinação. Quiçá, ousar dizer o que era. Não mesmo. Mas o fato é que na angústia de saber, de apreender, de entender, de saciar a emoção que se amalgamava em meu peito, com uma infinitude de outras sensações, das quais me lembro: do medo, da euforia, da frustração ante a ignorância, entre outros. Esforcei me em me concentrar e entender o que se dava ali.
Quanto mais concentrado eu me encontrava mais interessante se tornava a cena. Os gemidos me pareceu, pois não posso afirmar que o era, pois quem pode dizer o que são as coisas para além de nossa pobre e limitada, momentânea percepção? O caso é que ainda que assim, nessa pobreza e limitação própria de nossas percepções eu descortinei no enevoado, úmido e perene da cena um espectro em tons diversos de cinza e preto, multiforme em seu aspecto, ora humano, ora fumacento, nevoado, ora borrado como um desenho de formas alongadas e desarmônicas. Era um escravo sem face. Foi com isso que aquilo tudo me pareceu.
Aquele espectro estranho estava acorrentado em uma fina e reluzente corrente de ouro, ouro tão puro que reluzia na escuridão daquele mundo. A corrente estava atada ás pernas naquele. Quando ele tinha aspecto de solidez, também ela era desse aspecto, mas quando ele tinha aspecto diluído em névoa, está também assim se tornava. Parecia mesmo uma extensão daquele. Mas feita de ouro, de puro e reluzente ouro. Bem, se é que era ouro, mas no aspecto, no brilho e na beleza levou-me a deduzir que de fato era ouro.
Aquelas correntes saiam uma de cada perna, fininhas, mas imponentes o suficiente para serem vistas e tornarem-se inesquecíveis, impossíveis de não se notar.
Elas estendiam-se por todo aquele universo da cena, em uma infinidade de tamanho. Um tamanho indimensionável, imensurável de onde eu me encontrava a olhar. Parecia um filete de luz a borrar aquela imensidão penumbrada que era aquele universo imenso. Distribuía-se por toda essa imensidão e vinha ancorar-se no seu ponto final, ou inicial quem saberá dizer? O certo, é que conforme eu via, elas saíam, uma de cada perna daquele espectro estranho e vinham se ligar, após todo o imensurável percurso, em minhas retinas.
Ao perceber isso uma angústia tomou-me, era eu a fonte geradora daquelas correntes que aprisionavam aquele espectro? Era eu o gerador de tudo ali? Da Cena? Do universo? Das Correntes? Do Espectro? Em fim de todo aquele mundo que ali eu contemplava ignorantemente? Será? Questiona-me. Será que jorram dos meus olhos todas estas coisas? Estará o meu cérebro a projetar pelos meus olhos tudo isso? Todo esse imensurável, complexo e diverso universo que vejo sinto imagino e ouço, toco, cheiro degusto, amo e odeio, será?
Ou será ainda mais complicado... Será que não sou eu que sou gerado por esse universo, por aquele espectro? Não seria eu que principiei desse mundo e a ele estou conectado pelas correntes... A dúvida me assaltara... Quem é quem, nesse cenário... Ou será que há alguma razão de ser nisso tudo, terá alguma matiz de realidade nisso tudo??? Tantas questões me cegam, atormentam alucinam... Recito poesia para encontrar-me... penso no poeta que trata da poesia e arquitetura e da Matéria de poesia.
Volto a cena e continuo a sugá-la, no afã de descortinar aquele mundo e então entende-lo. E noto que aquele espectro recolhe coisas em uma carriola imaterial, por toda uma imensidão de mundo que se perde no longínquo horizonte, para os quatro pontos cardeais. E ainda assusto-me com essa visão quatridimensional, essa visão total, como é possível, não sei, mas vejo em todas as direções, a leste, a oeste, a norte e a sul e para onde quer que olhe vejo as quadro dimensões simultaneamente e seus horizontes escuros infinitamente a dilatar - se e lá, a mancha brilhante daquela fina corrente de luz.
Percebo que, assim como a poesia que eu recitava, poesia linda nascida dos Barros, dos Barros amassados pela essência vital de um certo Manuel, também aquilo ali tinha algo de arquitetura e embora tudo exalasse poesia e uma magia meio gótica, a arquitetura ali versava sobre sonho. Sim, era a cena conforme eu entendi, um discurso sobre sonho e aquele espectro recolhia, matéria de sonho. Matéria da qual se faziam os sonhos.
Todas as coisas invalores ou cujos valores podem ser disputados, mensurados, ignorados foram ali recolhidos.
Os homens em sua diversidade, de cor, de origem, de odor, de sabor, de prática, de posses ou despossuídos foram ali recolhidos.
Terrenos etéreos, materiais, imateriais, sabidos, insabidos com tudo que neles estão ou não estão, contidos ou incontidos foram ali recolhidos.
As emoções, os desejos, os medo e os segredos, os crimes, os pecados, as virtudes, as loucuras, o sangue, o suor e a lágrima, os prazeres: nobilizados ou amaldiçoados, os anjos: elevados, medianos ou decaídos, os demônios, os amigos e inimigos, a limpeza e a sujeira, a riqueza e a pobreza, tudo, tudo tudo... Tudo era ali recolhido.
Nossa vã filosofia, todo lixo e todo o luxo, ciência mater e filhas, tudo quanto vai sendo encontrado pelo espectro acorrentado, na carriola e levado e na pira invisível, no centro daquele mundo continuamente é depositado... E dessa matéria toda, em toda a sua extensão e diversidade, é que se fazem, e que nascem, é que jorram os sonhos.
Os gemidos eram a trilha sonora desse mundo, desse universo... E neles havia canção e choro, impacto e atrito, silêncio e sonoridade, amor, paixão e sexo, violência, paz e poesia, morbidez, aflição e candura, docilidade e suavidade, fúria e calmaria.
E tudo arranjado numa só nota que se remete continuamente numa eterna execução... Que semelhança pode haver entre esse gemido e o bater de asas da gaivota? Por que gaivota e asas trazem graça à rima disrítmica de meu verso torpe? ... Nem verso, nem reverso, nem anverso, nem universo, nem graça, nem gaivota, nem fúria, nem calma, nem som, nem tom, nem tua, nem minha, nem alma, nem carne, escárnio, nem nada... Só tudo... Matéria para se fazer sonho.
A angústia de se ver negado, constituído, destituído, confundido, dividido, questionado, questionando, é o preço de sonhar, por isso as pedras não sonham e se sonhar já não são pedras e quiçá tenham sido.
Já vistes as pedras a reclamar? Já vistes as pedras a sofrer, a chorar, a mudar-se? Não! E nem as verás... Elas são simplesmente pedras.
Mas, nós não! Quando nossa pedra carne se abre ao sonho, se abre em sonho, e se descobre sonho e, se abre em amor, ao amor, em desejo, ao desejo, em paixão à paixão, então ele se faz rosa e floresce no peito e, aí é tarde, já não há outro jeito, é amor na veia... com dores e prazeres.
É o sonhar a reinar, a jorrar mais sonhos. É o caos medonho no anônimo peito que só tu o sabe e, que por mais que se abra, que se doe, que se fale, que se grite, que se cale, é sempre pouco, é grito rouco, afônico no surdo eu de nós, dois, três a mais, infinito...
Grito de mim em ti, de ti em mim, a ser, sem ser, sem certezas, sem unidade, sem verdade... Só pedra viva, carne, a se desgastar e morrer a buscar-se. É pó, é pedra, é coração, é desejo... Sonho.
CAPÍTULO II
De Matéria de Sonho à Realidade Incerta
Penso que o sonho é só sonho, sem implicações na vida prática, cotidiana, na realidade, se bem que essa tal realidade é muito complexa. Tão debatida e tão indefinida, incompreendida, tão irreal... Ao menos para mim.
Sou muito sonhante, sonhador... Sonho acordado, dormindo, sonho... Sonho tanto, que as vezes me confundo. Não sei se estou dormindo quando estou sonhando, ou sonhando quando estou dormindo.
E assim, sonho que estou num sonho, sonhando lindos sonhos. Sonhos de amor, sonhos de desejos, sonhos de sexo, de céu, de infernos abertos em línguas de fogo, em corpos e rostos... Sonho... Metasonhos.
De tantos sonhos que sonhei, tem uns que foram tão reais que me arrependo de ter acordado ou de ter dormido, haja vista que talvez a vida que chamo de realidade, seja na verdade sonho...
Alguns de tão intensos, tão SONHO em caixa alta, não puderam ser esquecidos, nem depois de acordar. De tão sonho, se fez continuo, recorrente a se dar... Sonho que se sonha sempre.
Este se faz companheiro, caminhante, presente e vez ou outra sempre volta. Assim sempre sonho esse sonho meu...
Há quem, freudianamente usa a mente, se mentem ou não, caso não vem ao. Caso que seja só aqui este ponto, argumento, a encher e suster o verbo dessa prosa verso sem nexo. Mas o fato é que pensam, dizem consideram que, o sonho tem um significado. O significado da realização de desejos, embora seu significado seja implícito, oculto e carece de labor para ser interpretado, entendido, arrazoado.
Desde quando o ser humano ainda se locomovia pelos cipós selva a fora, no belo paraíso edênico, já se tem notícias dos sonhos a preencher-lhe a mente, as noites, os dias, o consciente e o inconsciente.
Quando ainda símio, a distância atrapalha a viajar até lá e arriscar um comentário. Mas de uma dezena de milênios até hoje, muito se tem de referência, de sonhos que foram sonhados. De sonhos que foram interpretados. De sonhos que forjaram histórias. De sonhos que soergueram e derrubaram homens e civilizações.
Egípcios e judeus, sonhos meus e seus, herdados, copiados, narrados eternizados, nos mitos fundados e distribuídos de boca em boca, de ouvido a ouvido.
E falam que desse hábito tão incontido e contumaz, os sábios desnudam-te e sabem para além do sonho, sobre ti, quase que de tudo. Uma geral sorrateira, analítica e minuciosa, que te revela. Será? Mas onde estão tais sábios, que se ocultam em consultórios, jalecos, ecos, paredes redes e teias... será?!
Dos sonhos, o filho José de Jacó se foi escravo.No Egito este escravo José, de sonhos se fez senhor. Faraós e serviçais revezando-se em cumplicidade, moldados pela a força do sonhar, metasonhos... Sonhos que sonham, que falam de sonhos, que falam de sonhantes e de realização de desejos.
Assim, o desejo que não está preso na materialidade, Verdade? Quiçá tenha resposta essa simples questão. Mas não, não a tentarei responder seguirei deixando-a solta a você, que vem...
O desejo, ao se dormir, sai do campo da matéria e adentra a imaterialidade. Assim, como a consciência aquieta e o inconsciente opera, e transmutado de um lugar a outro, o desejo se realiza, se consuma e no entanto permanece-se adormecido...
Ouvi o sabiá cantando tais verdades inverossímeis, a uma rolinha fogo- pagô, no galho de uma paineira. Pois esta sonhava em ser beija-flor, mas não qualquer beija-flor. Sonhava em ser um colibri, que cantasse como a cigarra, mas com a voz da gralha rouca. Canto que a encanta e lhe arrefece o fogo que lhe devora por dentro.
Mas, se cá na humana vida, pretensa suprema mente, já se faz pouco eficaz, coerente, eficiente, explicações e interpretações de algo tão incontinente, como é o sonho da gente.Quanto mais dizer o quê, de sonhos de passarinhos, e conselhos freudianos de sabiás laranjeira?
Um certo pensador, de tanto que pensou existiu. E ao existir escreveu, se não isto, algo próximo disso, que se traduziu em máxima: “penso logo existo”. Se existo por que penso, eu não sei, já não insisto, mas na dúvida persisto e em reverso redigo em tom questionante o que já fora dito antes. Existo por que penso, ou penso por que existo?
Sonhando estou pensando? Pensando estou sonhando? Como é o pensar no sonho e o sonho no pensar..? Tantos quês que vão gerando outros quês, sem nada responder. Mas que me levam a sonhar, pensar, pensar, sonhar... realizar.
Mas, para outro sábio grande, que se soube saber sonhar, junguiano sentidos e teses para dos sonhos tergiversar, eu soube pelo diálogo de um tatu e um tamanduá. Bichos estranhos e sonhantes, que sonhavam em ser formigas, pra se auto devorarem e nesse percurso entenderem o que se passa na hora de seu manjar. Pois comer, sem entender, sem sonhar é tão simplório que até homens o fazem, dia-a-dia sem notar.
Assim, criativamente dizia a outro o um. Nossos sonhos são mensagens de uma tal psiquê, que a julgar pela sonoridade deve ser horrível de se comer. Nem de longe lembra a saúva, formiga, venha ... uva, vinho.
Os sonhos assim pensados revelam detalhes que de nós mesmos podemos ignorar e assim, julga que podemos de algum modo nos melhorar... Sonha o tatu e o tamanduá.
Para estes o sonho não é simples satisfazer de desejos reprimidos, é a vida em seu sentido sem sentido, ressentido. Os sonhos nos abririam as portas da perenidade e tudo que foi antes, viria a tona. Tudo, todas, desde o princípio de tudo, seja onde tenha sido e há quanto tempo tenha se dado.
Mas não sou freudiano, não sou junguiano, não sou passarinhano nem tatutamanduano, nem sou nada que saiba ser... Se os ouvi de fato e como os ouvi, nem sei, nem me lembro, nem posso dizer que entendo.
São loucos, todos eles, freuds, jungs e todos os seus seguidores, passarinhos tatus tamanduás... Quiçá não o seja também eu.
Mas em meio a prosa e verso, fábulas e psicanálises, restam me meu ais e quês... restam me sonhos.
CAPÍTULO III
Um Sonho Recorrente
Olha, olho, alma, janela, imagem, reflexo... Mero verso desconexo, de introspecto introdutório. Fixo-o no frontispício deste, como capricho mimoso, do mimado ser sonhante que por ora aqui eu sou.
Na impossibilidade que o caso aqui impõe, que é o de me definir, ainda que numa frase. Já que conforme verás, tudo aqui é relativizado, combatido, questionado e, nada é consumado.
Então, num caso desses, desço. Desço da ideia de definir-me e apresento-me, conforme posso, nesses caminhos malucos, que com as palavras faço, por entre sonhos, pedras e poesia.
Mas, para um bom caminhar entre mim e ti, nesse sonhar acordado, fica entre nós acordado, um acordo celebrado por amigos, que se encontram e, sem se conhecerem, se amam, se locupletam e se alegram... Se topares o acordo proposto, sem acordar do meu sonho, ou teu? Mesmo podendo acordado estarmos! Se aceitares, aceito que sou você e você aceita que sejas eu...
Assim, vou eu em ti e vens tu em mim e, já não haverá cismas, fissuras rupturas que não as minhas e as tuas, unidas na mesma loucura, que nos leva pela vida...
Se concordares, prossiga, continue lendo! Senão, diga adeus, feche o texto e jogue o fora... Afinal esse texto fala da ânsia de amigos que se buscam e se sonham. Pois bem...
Tudo se inicia quando deito-me e durmo! Será? Ou seria quando deito-me e acordo? Se a vida é sonho, que dizer disso..? Mas seja como for, sonho que estou caminhando... Caminhando em São João d’Aliança.
São João d’Aliança é do tamanho de um grão de areia, em face do globo. É um grão de areia na vastidão da praia, mas para mim é o mundo inteiro, o céu e o inferno, o éden e o Hades, num palmo de chão goiano no reino do rei Cerrado.
Ali há tanto, mais tanto, que chega a doer... Ali eu sou só eu, longe dali, eu nada sou. Ali é que me reconheço, me faço, me desfaço, me refaço, me embaraço e desembaraço e sempre me reencontro, num sorriso, no abrigo do amigo e do inimigo, no abraço e no descompasso, no manquejar do passo, no acelerar do compasso, na pedra, no chão, na relva, na noite, no luar, no coice do gado e gente do equídeo e do cão da arma, no cuitelo e corte, no coito e no gozo, na vida e na morte, no labor e no vadiar, no dormir e no acordar, no sonhar, no realizar, no frustrar, no perseverar sem razão, simplesmente obedecendo o sonho, que me vez amor na pedra carne do peito, a que chamam coração.
Cada vez que parto, é um parto, de partir em saída, em jorrar e nascer de versos e prosas e poesias...
Cada vez que volto é um sonho realizado, alívio, refrigério de filho retornado, mesmo sem saber ao certo, se sonhando ou acordado.
O dia é de sol claro, intenso, belo e vivaz, como os dias ensolarados da Chapada dos Veadeiros. A luz, as cores, a beleza e os contrastes são de uma perfeição, que só mesmo sendo sonho. Até as coisas ruins, os defeitos, as dores, os males, são de perfeição indefectível.
É mais ou menos assim, ao que me lembre... Sou como alguém que chega de longe e volta pra casa.
Quando chego sinto as alegrias e emoções de um filho que chega em casa, aprecio os detalhes, a luz, as cores e me realizo em tudo. Contudo, uma saudade punge no peito, o desejo de reencontrar um amigo do tempo da puerilidade, um amigo de sonhos e peripécias de infância. E nada me satisfará plenamente, até que nos envolvamos num mesmo abraço, até que nos olhemos olho a olho e manifestemos, a já sabida e tantas vezes confessa, saudade, que se aglutinara no peito, pelas horas distantes.
Estático aprecio a tudo, como criança afoita que quer tudo de uma só vez. Como, se o ordenar das emoções as fossem empobrecer, diminuir, reduzir.
Contemplo instantaneamente a tudo na voracidade incontida do breve segundo do chegar e nesse efêmero e eterno segundo reconheço cada pedacinho de tudo por ali. E me reconheço em cada pedacinho, como se me olhasse num espelho. No entanto, ao poucos vou percebendo coisas diferentes.Verifico que São João, mais do que nunca, é um mundo inteiro contido em suas dimensões locais.
Com as habilidades do espectro do universo dos sonhos, vejo São João em todas as direções e vejo quão crescida e exuberante, misteriosa e encantante se fez essa cidade.
Olhando-a vejo que a nordeste, a cidade cresceu e vai até o Vale do Paranã, onde entre a faixa de terras compreendidas entre a base da Serra Geral do Paranã e o estender-se da Chapada há um bairro. Esse bairro tem peculiaridade chocantes, marcantes, que não se deixam passar despercebidas.
É um bairro de estrema pobreza e miséria, de grande marginália e banditismo, sujeira e fome. É uma espécie de mangue, um embrejado, um terreno alagadiço repleto de morbidez e lascívia, luxúria e escândalos, de homens de sujeiras físicas e morais.
Num fragmento de centésimo de segundo estou nesse bairro, onde faço tais observações constatando e questionando meio estupefato, como se pode viver em tais condições?
E vou a esse bairro por que chego afoito, chicoteado pela chibata implacável da saudade. Saudade de um amigo de infância, meu querido amigo Rogério. E ao chegar já sei que ele é habitante desse lugar.
Vou com naturalidade a esse lugar tão feio e inóspito. Lá eu o vejo morando num caluje muito pobre e sujo. Caluje nefasto e horripilante, que reproduz com perfeição todo o resto do bairro. Pois como tudo em volta e, ele um apenas um traço a mais nessa monovisão. Como um pé de soja na imensidão da lavoura verdejante, de aspecto monovisual, onde tudo é igual e todos os pés de soja, são só soja.
Rogério ali estava, assim, exatamente assim. Só reconheço sua habitação, por vê-lo ali, e eu jamais o confundiria, ele é meu amigo. Ele está enlameado de lama preta e fétida até a altura dos joelhos, pois, não tem asfalto ou qualquer tipo de calçamento ou pavimentação naquele bairro, nem tampouco há piso nas residências. Mas mesmo assim o reconheço e ele me reconhece. As casas são de chão batido e com o constante inundar das águas mortas que veem da direção do nascente, como se jorrassem do pé da serra, tudo se transforma num mórbido lamaçal, que deixa a todos os moradores com lama a altura dos joelhos e aspectos de mortos vivos.
Assim eu o encontro. E ao encontrá-lo nesta situação eu sofro e choro pela sua situação, ele sorri, me vê, me saúda com um aceno, mas repentinamente eu não estou mais lá naquele bairro eu sou transportado a outro lugar e o deixo lá. Angustia-me essa separação inusitada e repentina, atormenta me o desejo de retirá-lo dali, de traze-lo para junto de mim, de velo, limpo, cheiroso, saudável, livre de tão abominável habitação, de tão inóspito ambiente, de tão mórbido viver.
O prisma muda e neste novo panorama eu estou voltando para o centro, onde fica a minha casa. Enquanto caminho reflito e observo meu interior, e ali me descubro, num misturado de angústia e alegria. Encontrei meu amigo e isso é benfazejo, mas assim, em tão inaceitável situação.
Ao longo da caminhada de voltar para o centro da cidade, observo que para ir ao bairro fui num ínfimo fragmento de tempo, mas para voltar eu faço o caminho a pé, numa procissão de reflexão e auto observação.
Assim vou caminhando atento, observo que não estou de calça e camisa conforme chegara ali e, conforme fui ao bairro. Agora estou de camiseta, bermuda jeans e meias brancas com tênis do tipo usado para jogar futebol de salão. Irrelevante observação adiciono a mim mesmo, ali no ato do observar.
Olho mais amplamente e percebo que São João é esse mundo. A cidade está enorme, cresceu, se desenvolveu, e no sopé da Serra Geral do Paranã lá embaixo no Vale, o dia é claro, de céu limpo e iluminado, as cores do dia são de uma beleza bestificante. Como aqueles que tantas vezes vi descendo a Serra, antes do sol nascer e contemplar a primeiras horas do dia em plena descida da Serra, onde a beleza enche os olhos sufoca a alma e emociona o observador. O calor intenso permeia o pulmão em rajadas de ar quente e cauteriza os ânimos, como se nos cozesse em uma grande panela de pressão.
Para além, as barragens do Projeto de Irrigação Flores de Goiás faz do chão um grande espelho a refletir a imensidão celeste em sua multitonância, completando a beleza que até confunde. Não se sabe ao certo se, se está no céu, ou no chão e tampouco o que é imagem e o que é reflexo.
Lá em baixo ao pé da grande e bela Serra Geral do Paranã passa a linha férrea que leva a rica produção de toda a região. Vejo os trilhos, o trem que passa carregado nesse momento, apitando e acentuando a solidão, já não tão silvícola daqueles gerais de outrora bravio.
Mais uma vês me espanto, me surpreendo com tanta mudança. E nesse momento percebo o quanto estou longe de casa. Mais uma vez confirmo minhas impressões, observando o quão enorme está essa cidade.
Sigo caminhando pelas colinas que se revessam no tamanho e na altura compondo a Serra Geral do Paranã. Vivo intensamente tudo isso e experimento uma espécie de distanciamento de mim mesmo, uma tal alteridade. Ali sou outro, eu mesmo olhando me a distância, e assim vejo-me na terceira pessoa, como um outro em tela, a subir as estradas da montanha voltando para casa.
Ao voltar a caminhada é imensurável, longa, demorada, como a vida. Breve, mas imprecisa. Sigo em frente. Sem domínio de nada, quando descubro, percebo, que o caminho de volta que eu fazia não era o que eu imagina fazer. Esse caminho que estava fazendo não era o traçado em minha mente, ele não me leva para o centro sul da cidade onde moro, mas conduz à região norte da cidade.
Reconheço onde estou, é nas imediações do Córrego Estrema, o primeiro Córrego que se cruza quando de está indo em direção a Alto Paraíso de Goiás. Outra vez me surpreendo e me espanto com a minha cidade que se mostra mais uma vez uma cidade que crescera além do que eu imaginava. Nas minhas lembranças, na memória tudo ali era campos e zona rural, no entanto agora vejo que tudo ali é cidade.
Um belo e imponente bairro nobre, de mansões faraônicas e cinematográficas, alguns comércios imponentes e muitos conhecidos esbanjando riquezas, luxo e prosperidade. Tudo é tão grande. As casas, as lojas, o glamour.
De repente à esquerda desse lugar, após falar com alguns conhecidos de modo breve e transitório, já não estou mais nesse bairro, estou à poente, onde há um pequeno conjunto de casas simples, com a cara da minha infância.
Por ali há inúmeras pessoas conhecidas, parentes, amigos e tudo é extremamente aprazível. Mas isso, essa imagem, essas pessoas, essas casas, são tão somente o rol de entrada de um bairro gigante que se entende à poente, constituindo-se num labirinto de casas e ruas belas, que somem de vista fatigando o olhar.
Tento voltar para casa, mas estou sempre saindo e entrando em um espaço novo de uma São João d’Aliança indefectivelmente enorme surpreendente. E assim, desse lugar onde tem tanto de meu eu menino, sou transportado ao centro-oeste da cidade, onde há um lugar que nunca houve, e do qual muito parcimoniosamente se reconhece a geografia longínqua da adjacência.
Trata-se de um local de trevas e sombras, um lugar marcado pela transcendência e espiritualidade. Ali é um lugar de demônios e espíritos, de trevas e ritos ligado ao divino, ao sagrado. Sinto energias ruins e desagradáveis, mas tenho a impressão de que preciso entrar ali para de algum modo ajudar meu amigo de infância, meu amigo Rogério.
Nesse bairro transcendental há um enorme edifício cinza em estilo medieval, sem janelas. Há só o espaço onde deviam ter janelas, só o lugar da janela, mas no entanto não há janelas e há escadarias internas e um elevador.
Ante esse cenário, há alguma reserva em mim, o que não chega a ser medo. Há também expectativa e desejo. Uma inquebrantável vontade de entrar ali e fazer o que for preciso, para ver meu amigo em outra situação, livre e renovado em tudo.
Entro, mas não entro com vontade e vigor, entro com reserva e cautela, antes de entrar, observo em volta e vejo aquele Vale cinza, uma névoa nefasta que envolve as imediações daquele lugar. Embora para além do horizonte próximo, se veja as luzes do dia a irradiar beleza e vida.
Entro, mas não avanço no interior do prédio, vejo alguns compartimentos, adentro mais e vejo anjos de trevas e demônios, sacrifícios de sangue e de dor e me arrepio. Repugno aquela situação e tudo se perde...
No decurso do sonho, entre seu fim, o fim do sono e o acordar, o despertar, tudo se prolonga, se confunde, se dissipa e se perde, para depois se refazer nesse mundo que comumente chamamos de real. Mundo da consciência e da razão, onde normalmente acreditamos que estamos acordados e lúcidos.
Normalmente acordo angustiado sem salvar meu amigo e bestificado com uma São João diferente e no entanto igual em muitos aspectos.
Uma cidade onde passado e presente, modernidade e tradição se somam e se combatem. Se desfiguram e refiguram o ambiente conservando um pouco e desfigurando um pouco ao passo que evoca e impõem o novo.
Assim percebo duradouro o desejo de ver São João ser um pouco do que se mostrou a mim nessa procissão multi facetada, que é sonho, mas que pode não ser, que é realidade, sem o ser.
Isso se passa numa realidade onírica. Nesse sonho o que vejo é como se fossem zonas intersectívas de várias dimensões que constituem São João d'Aliança... Onde zonas intersectívas se comunicam e interagem entre si, possibilitando várias realidades de São João, inclusive a onírica, o que a faz perceptível e experimentável, somente durante o sono. Caindo na loucura da imaterialidade quando sentida e vivenciada a luz desse dito munda da realidade.
O que mais faz deste, um acontecimento interessante é a sua recorrência. Esse sonho se faz sonhar todo ano, entre duas ou três vezes por ano e por cerca de doze ou treze anos que ele se impõe insistentemente.
A recorrência com que ele se dá, já implica reflexos no próprio sonho. Em algumas vezes já aconteceu de eu identificar o que se passa e repetir a mim mesmo, que estou tendo aquele sonho.
Digo-me, ah! É aquele sonho! Não é um sonho, é aquele sonho, sonho conhecido, emoções sabidas, trajetos e enredos conhecidos, por isso digo-me: ah, é aquele sonho esquisito que vivo sonhando.
Assim, a maior parte dele dali em diante já é conhecido. Contudo, acontece de mudar alguns aspectos a cada vez que sonho. Por exemplo:
As vezes pego o caminho das montanhas e começo a andar de volta para minha casa e de repente eu começo a voar. Voo e me espanto, me emociono, me sensibilizo e derreto ao me ver e perceber voando... Que sensação deliciosa, poética, incrível!
Repentinamente perco a capacidade de voar e sentindo a ânsia e o tormento de quem está nas alturas e vai caindo a custo consigo reter a força gravitacional e voltar ao chão sem cair tragicamente.
Assim, atordoado, continuo a andar e então saio em pontos distintos da cidade de sonho para sonho. Já sai no bairro das mansões, já sai no bairro de minha infância, já sai no lado leste à nascente da cidade, no calçadão que cerca o bairro transcendental. O prédio nefasto do Vale cinza é tão alto que alcança o céu e vai se afunilando ao passo que fica alto, sumindo na imensidão celeste. A cada vez que se repete muda algum detalhe, conservando-se em grande parte.
No mais é sempre a mesma coisa. Eu durmo e começo a sonhar e sonhando vivo. Se a vida é sonho para que acordar? O que é a imagem e o que é o reflexo? Quando dormimos e quando acordamos?
Não há respostas que saciem tais questionamentos. Os sonhos vão e vêm. Nem Freud, nem Jung, nem os pássaros, nem os bichos, nem eu, nenhum de nós conseguimos dizer algo que seja capaz de satisfazer a ânsia interior, que se nutre de sonho.
E se nessa lida diária quando acordado ou sonhando, sou um saco de tripas a se gastar vida a fora, nesse cenário paradisíaco que é minha terra Chapadeira, não me resta outra lide, que sacie mais meu coração inquieto, do que o flerte com as palavras.
Com elas me deito e me levanto, me deixo, me caso e me amasio, me entrego, me prostituo, me redimo, me perco e me reencontro. Com elas me faço, me desfaço. Com elas domino o indomável, explico o inexplicável, profano o sagrado, sacralizo o profano, crio o incriável e encerro o eterno.
Com ela sou deus de barro, barro de terno, no inferno eterno, do materno seio de mim, que minha mãe gestou em si, por si, por mim.
Com as palavras manipulo como oleiro ao barro, os sonhos que minha alma sonha, quer dormindo ou acordada.
Com as palavras me entendo, ainda que não as entenda. Com elas sinto seu poder, ainda que não tenham nenhum ... Com elas faço versos, com elas faço-me poeta, com elas faço-me poesia, esse sonho que nos sacia, ainda que efemeramente.
Procuro pelas palavras, nas palavras, sentido para os sonhos que tenho, os sonhos únicos e o sonho recorrente, mas por mais que se multipliquem as palavras, por mais que os versos jorrem, tudo é incerto.
Não há desejos saciados, nem arquétipos revelados, não há voos alçados, nem gozos gozados. Porque o sonho insiste, resiste, persiste e assim, o sonhante desiste de ser senhor de seus sonhos. E para não partir de mãos vazias se abraça à poesia e se lança na vida, de alma nua e ferida, pelas adagas dos sonhos.
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