O PARTO
O PARTO
Ai, ai, ai! Como dói minha iscadeira! Essa minha cacunda cansada, de doer inda me mata!
Maria Tomásia se levanta do rancho e manquejando e balbuciando lamentos se dirige ao rêgo d'água, pamode lavar os últimos pano que o menino tá chegando. Pelas dores que vem sentido e o tamanho do bucho, ela sabe pela experiência de outros sete partos, que sua hora não demora.
Quando a noite cai e o céu de estrelas se decora, as dores chegam ao seu liminar e Maria Tomásia sabe que é hora da grande hora. Assim, entre uma contração e outra manda seu primogênito Pelágio ir à casa da vizinha, chamar dona Davina, parteira e comadre sua.
Deveras, acertado tudo já estava, desde a semana passada, quando as dores primeiras de parir sutilmente já se anunciavam. Foi na reza de dona Davina, ela que era devota de Nossa Senhora do Livramento, enquanto amassava o "rosado e a brevidade", biscoitos caseiros à base de goma de mandioca, que dona Davina não gostava de deixar faltar na sua devoção. Enquanto preparavam as guloseimas, todo ano ela contava a mesma historia, dizia ela: - essa reza é divução dos antigos, tá na família pá mais de duzentos anos. Cumeçô cum a bisavó de minha vó, uma véia muito temente que ficô cunhicida cuma "dona Precata" purque contam que ela era precateira de mão cheia, fazia precata, que vinham de longe pamode dela incumendar. Era precata que durava pá vida intera, num era essas porcaria de sandália que nois vê hojeindia não. Dona Floriscena cuma era seu nome de batismo, acumeçô cum a divução, foi pamode sarvá a minina dela dum parto de morte. Dizem que os trabaio de parto da minina já passava de três dias e a coitada num paria. Quando a mãe cheia de medo já privinino do perigo que sintia, recorreu à fé e foi Nossa Senhora do Livramento que salvou a mãe do minino. Desde intão, a reza tá na família.
Foi nessa ocasião que Maria Tomásia vendo que sua hora aproximava ao fim da reza deixou tudo acertado com sua comadre Davina, que quando as dores apertassem, mandava ela, o mínimo avisar.
Foi assim, que Maria Tomásia, tinha tudo preparado, conforme providenciara ao longo dos dias. Enquanto a panela de água fervia, ela dava janta pros meninos. No quarto simples do rancho, todos os panos do bebê estavam limpos e bem preparados. E para o parto, tudo estava pronto, tinha: fumo moído, mastruz, folha de pimenta, picão, carrapicho, azeite de mamona, fio de algodão, cachaça, pimenta, ovo e farinha, bem como o demais necessário. Faltavam mesmo só a hora e a parteira. A hora se aprochegava e a parteira num morava longe, era coisa de quarto de légua, a distância até o rancho de dona Davina, dentro em pouco ela chegava com suas coisas, rezas e experiências acompanhada do minino Pelágio, pra trazer por suas mãos, mais um filho de Deus pro mundo. Seria só mais um parto, nos quase duzentos que já fizera ao longo da vida. Dona Davina era parteira tão recomendada que vinha fazendeiro forte de longe, pamode pedir socorro aos seus serviços de parteira. Ela ia com amor e devoção, nunca cobrava pelo serviço, achava que era missão divina a ela confiada ser "aparadora de menino" e onde preciso fosse, lá ia ela pronta pra trazer mais um homem pras lutas do mundo.
Tinha algo bem curioso que ela sempre dizia quando a criança nascia. Fosse homem ela dizia : - Eita sô quanta alegria é "burro pra carga" machinho do saco roxo. Sendo mulher dizia assim: - Eita sô quanta alegria é "carga pra burro" feminha pra perfumá o mundo. Sempre reverente e sábia, na sua simplicidade. Nunca cobrava nada, mas sempre era obrigada a aceitar alguns presentes, de gratidão de quem foi socorrido. Assim, ganhava: farinha, frango, rapadura, balaio, quibano, porco, bezerro, novilho roupa, entre outras coisas. Além de uma porção de afilhados e "filhos de nascimento" que para o resto da vida lhe teriam respeito e gratidão, sempre-lhe pedindo a bênção, em qualquer ocasião, pois para estes e família, dona Davina não era qualquer uma, era a eterna "mãe de imbigo", ou seja, a parteira que lhe trouxe à vida, amparando em sua primeira queda, do sagrado paraíso do bucho materno, para as cores e cheiros, luzes e dores das estradas do mundo, cortando-lhe o umbigo, tomando-lhe nos braços, nessa hora de medo e horror que traumatiza o nascente, para aquecê-lo e aconchegá-lo nos braços maternos, devolvendo-o assim, ao conforto da mãe que o acolhe e alimenta dando-lhe de imediato o peito e o colo, símbolos mais sagrados do mundo, que reproduzem as feições do útero, esse paraíso irremediavelmente perdido no ato do parto.
Como sempre fizera com os demais filhos que agora seriam oito, contando o que nasceria em breve, Maria Tomásia ia parir sozinha. O marido tava na lida e não vinha pra acompanhar- lhe nessa hora. Isso não lhe trazia desconforto, ela sabia que João era mesmo assim, não afeito a essas coisas de mulher não. Assim, vinha em casa trazer as coisas e sumia pra roça no Boqueirão, onde tinha terra e plantava. Era bom marido, num deixava faltar nada, mas nessas horas ele preferia ser avisado depois de tudo corrido. Ai sim, ele vinha abençoar o herdeiro, tomando- o ao colo, beijando-lhe a testa, escolhendo o nome, etc. Mas durante as horas de parto ele gostava de estar longe. Sempre foi assim, é o jeito dele. Os demais maridos desse tempo, mesmo não podendo fazer muita coisa estavam sempre em casa nessas horas com a esposa, dando assistência e acompanhando tudo. Alguns até parto faziam. Não é que não soubessem fazer não, é que esse é um momento sagrado da vida das mulheres, a natureza reservou a elas esse momento. Foi capricho de Deus que a mulher desse a vida ao homem e dela ele cuidasse enquanto vivesse.
Existe aí nesse ato de parir uma poesia sublime. A mulher é a poetisa da vida, assim quis a natureza, que a empoderou com todas as faculdades e forças. Mulher não precisa de nada pra parir, pari naturalmente, pari poeticamente, com a poesia selvagem da natureza bravia, que se contorce, geme e grita tecendo a vida, que entre saliva e sangue, suor e gemidos escorre pelos seus lábios ganhando os lábios do mundo. Sempre foi assim! Desde que o mundo é mundo, que acontece assim e não estamos nós aqui por acaso ou capricho médico não, estamos aqui porque nossas ancestrais eram poetisas fortíssimas, poderosas parideiras.
Decerto que progredimos, ganhamos conhecimentos e técnicas e isso é bom, é necessário para dar mais qualidade, segurança, assepsia, maior qualidade de saúde e de vida conforme os padrões dos nossos dias. Mas não há razão, não sem uma real situação de risco, perigo pra mãe e filho, para que haja intervenção de parto artificial. Isso é superficializar a poesia divina, é empobrecer o parir, estigmatizar e enfraquecer a mulher em sua essência mais sublime.
E tem mais, há quem de longe, já desconfie que transtornos e medos, frieza e distanciamento, dificuldade de relacionamento, entre outros psicosofrimentos e doenças de nosso tempo, tenham suas origens, nesse momento, nesse ato sagrado do parto que fora artificializado.
Os partos artificiais, com seus mitos e inverdades, já são unanimidade ou estão quase se tornando. Isso em nome da praticidade, do lucro, da vaidade e das inverdades apreendidas. Em nome do não sofrer, da estética antiética e escalafobética, fóbica e cafona que faz desaparecer as mulheres poesia, as mulheres naturalmente potentes, poderosas parideiras de gente, que desde o nascer vive e sente, não teme viver, não teme sentir, poetisa e intérprete da natural poesia da vida, que torna a mulher mais mulher, pois não lhe furta o poder e faz o rebento mais potente, por nascer naturalmente, saudável, solto e livre pelo mundo.
Remédio é para o doente e não para quem teme adoecer. Para não adoecer é prevenir, precaver-se, se cuidar, pois já nos lembra o ditado, que é bom sempre guardar, que na vida sempre é melhor prevenir do que remediar, assim, parto artificial, deveria ser o que é, remédio para os casos de necessidade, não a unanimidade que já está se tornando...
... Enfim, chega dona Davina e o menino Pelágio e ela vai logo assumindo a casa, termina de dá cumê pra mininada e põe todos pra dormir. Chama a vó Mariazinha, põe à frente da cozinha e entra pro quarto onde Maria Tomásia já se encontra preparada. Contrações em alternância a cada instante menor, vão fazendo-a feito cobra de dor se contorcer, serpentiforme a dançar. A mulher é parideira, confia na companheira e na sua natureza, por isso ela não grita. Geme e se contorce, respira em descompasso, mas não se vê embaraço, nem medo nos olhos dela. A lamparina acesa, ofusca da noite a beleza que hoje é de lua cheia, a se exibir jubilosa pela fresta da janela.
As horas de dores correm, e dona Davina a socorre com presteza e dedicação, quando as massagens e caldos, os banhos e beberagens mostram sua solução, relaxam e causam calor aumentado assim, a dor e a intensidade da contração. Bacia de água temperada, nem pelando e nem gelada espera pelo bebê. No leito já preparado o corpo semideitado de Tomásia, sua e canta, em preces e ais indiscretos que lhe escapam da garganta.
Segurando a cabeceira e apoiada pela parteira ela pressente o momento. Num contrair extenuante que durou eterno instante de dor e força fazer, escuta o eco estridente de um choro renitente anunciando o bebê que acabava de nascer. Seu corpo extenuado, de suor e sangue banhado relaxa a desfalecer. Lágrimas banham-lhe o rosto, mas não são lágrimas de desgosto, são de alívio e emoção. O tremor e o frio ascende, e um gole de água ardente ali serve de solução. Enquanto dona Davina, com suas mãos benfazejas cortam o umbigo e prepara tudo, acolhendo o bebê, a mãe Mariazinha socorre Tomásia que vivencia pela oitava vez o milagre do nascer.
Dona Davina sorrindo diz seu jargão de parteira feliz pelo aparado, - eita sô, quanta alegria, é "burro pra levar carga", machinho do saco roxo, que por Deus é abençoado. Ainda sem muitos panos e pele superficialmente lavada, nos braços da mãe querida o rebento é acolhido para a primeira mamada. Mama como um peregrino esfomeado o menino tem potência no sugar, a mãe toda extenuava é rainha entronada soberanamente a reinar. Toda a beleza da vida, toda a poesia do mundo, concentram-se nesse segundo, neste quarto onde estão mãe e filho completando o milagre da vida, que vem se dando desde a fecundação.
O silêncio ali domina, Mariazinha e dona Davina, são estátuas bestificadas olhando a cena sublime que outra vez se repete, sendo inédita porém. Mãe e filho se conhecem, se conectam pelo toque, pelo olhar, pelo amamentar. Assim, sacramentam vínculos, que unem almas e escondem raizes, de uma maneira tão divina, que não se pode explicar. Por isso, tudo é silêncio e grande contemplação, uma espécie de oração, onde impera a natureza, sem nenhuma estranheza, a vida a sacramenrar, num ritual de poesia capaz mesmo de encantar.
No meio da sugeirada, pano, sangue, erva e raizadas, apetrechos de parteiras, bacia, faixas e panos, placenta, fumo e azeite é momento de limpar. Dona Davina completa o serviço, limpa banha e veste a mãe e o menino. A Mãe de Tomásia arruma a cama recolhe os restos do parto comemorando mais um neto que a vida veio lhe dar.
Tudo limpo e arrumado Tomásia toma um caldo, para se recuperar. Dona Davina comemora, querendo mesmo ir embora, para casa retornar, mas é alta madrugada, e assim, atende a comadre que insiste em seu pernoitar.
Exausta Maria Tomásia, adormece sossegada com seu filhinho a mamar. As outras deixam o quarto se abrigam na cozinha bem baixinho a conversar. Tomam cachaça com torresmos, um lanche na madrugada, depois da obra acabada é hora de descansar.
Eu que não dormi direito, curioso e teimoso que sou, caçei no rancho um jeito, da coisa observar. Sabia que alguma coisa muito estranha com mamãe ali estava a se dar. Mas era eu muito novo, sendo o quinto dos irmãos não dava pra imaginar, que naquela noite agitada, nossa vida tão pacata, mais um membro ia ganhar. Só soube no outro dia, quando com permissão de titia pude no quarto adentrar. Mamãe me abençoou, no canto da cama me mostrou um embrulho a dormitar. Ela me disse assim: - esse é seu irmãozin, que acabou de chegar. Confesso nada entendi, meio frustrado saí dali e fui pra vida brincar.
Dona Davina foi embora ficamos nós e vovó agora e a mamãe acamada com aquele embrulho de lado. Dois dias foram passados e então papai chegou para meu mundo alegrar. Aos poucos me adaptei e o irmão aceitei com a vida a passar. Mamãe logo se recuperou e a rotina voltou sem nada se alterar, o irmãozinho crescia e muitas vezes eu queria seus lindos olhos pegar, mas logo mamãe brigava, para isso semente bastava, meus dedinhos curiosos, daqueles olhos brilhosos tentar se aproximar.
Quantas memórias guardadas, parecia quase nada quando me pus a narrar. É que pra falar do parto, recordei amor e vida, revivi horas perdidas nos braços da emoção. E assim, percebo convicto que o parto natural é bênção pra toda a família. Já o parto artificial é feito no hospital, sem emoção, sem esse tipo de memórias que nos constrói e vinculam, com um bando de estranhos, tem um homem no comando e é um rito sem poesia. A natureza ali excluída, vê a mulher sua escolhida, vitimada enfraquecida, da vida anestesiada. E a poesia divina que dormia na menina é pelo médico amputada, em nome da praticidade e uma tal modernidade, civilidade e esterilizadora que esvazia o ser humano, esse momento profanando. Partos em escala de produção, agendados no balcão de uma casa de doenças. A vida perde a poesia, o nascer perde a essência e virá mercadoria e as dores no parto evitadas, sem generalizações e nem determinamos, vão solidificando o câncer do egoísmo e esfriando as relações. E as dores de que se fugia vão surgindo e ressurgindo, outras formas assumindo de transtornos e confusões.
Ai, ai, ai! Como dói minha iscadeira! Essa minha cacunda cansada, de doer inda me mata!
Maria Tomásia se levanta do rancho e manquejando e balbuciando lamentos se dirige ao rêgo d'água, pamode lavar os últimos pano que o menino tá chegando. Pelas dores que vem sentido e o tamanho do bucho, ela sabe pela experiência de outros sete partos, que sua hora não demora.
Quando a noite cai e o céu de estrelas se decora, as dores chegam ao seu liminar e Maria Tomásia sabe que é hora da grande hora. Assim, entre uma contração e outra manda seu primogênito Pelágio ir à casa da vizinha, chamar dona Davina, parteira e comadre sua.
Deveras, acertado tudo já estava, desde a semana passada, quando as dores primeiras de parir sutilmente já se anunciavam. Foi na reza de dona Davina, ela que era devota de Nossa Senhora do Livramento, enquanto amassava o "rosado e a brevidade", biscoitos caseiros à base de goma de mandioca, que dona Davina não gostava de deixar faltar na sua devoção. Enquanto preparavam as guloseimas, todo ano ela contava a mesma historia, dizia ela: - essa reza é divução dos antigos, tá na família pá mais de duzentos anos. Cumeçô cum a bisavó de minha vó, uma véia muito temente que ficô cunhicida cuma "dona Precata" purque contam que ela era precateira de mão cheia, fazia precata, que vinham de longe pamode dela incumendar. Era precata que durava pá vida intera, num era essas porcaria de sandália que nois vê hojeindia não. Dona Floriscena cuma era seu nome de batismo, acumeçô cum a divução, foi pamode sarvá a minina dela dum parto de morte. Dizem que os trabaio de parto da minina já passava de três dias e a coitada num paria. Quando a mãe cheia de medo já privinino do perigo que sintia, recorreu à fé e foi Nossa Senhora do Livramento que salvou a mãe do minino. Desde intão, a reza tá na família.
Foi nessa ocasião que Maria Tomásia vendo que sua hora aproximava ao fim da reza deixou tudo acertado com sua comadre Davina, que quando as dores apertassem, mandava ela, o mínimo avisar.
Foi assim, que Maria Tomásia, tinha tudo preparado, conforme providenciara ao longo dos dias. Enquanto a panela de água fervia, ela dava janta pros meninos. No quarto simples do rancho, todos os panos do bebê estavam limpos e bem preparados. E para o parto, tudo estava pronto, tinha: fumo moído, mastruz, folha de pimenta, picão, carrapicho, azeite de mamona, fio de algodão, cachaça, pimenta, ovo e farinha, bem como o demais necessário. Faltavam mesmo só a hora e a parteira. A hora se aprochegava e a parteira num morava longe, era coisa de quarto de légua, a distância até o rancho de dona Davina, dentro em pouco ela chegava com suas coisas, rezas e experiências acompanhada do minino Pelágio, pra trazer por suas mãos, mais um filho de Deus pro mundo. Seria só mais um parto, nos quase duzentos que já fizera ao longo da vida. Dona Davina era parteira tão recomendada que vinha fazendeiro forte de longe, pamode pedir socorro aos seus serviços de parteira. Ela ia com amor e devoção, nunca cobrava pelo serviço, achava que era missão divina a ela confiada ser "aparadora de menino" e onde preciso fosse, lá ia ela pronta pra trazer mais um homem pras lutas do mundo.
Tinha algo bem curioso que ela sempre dizia quando a criança nascia. Fosse homem ela dizia : - Eita sô quanta alegria é "burro pra carga" machinho do saco roxo. Sendo mulher dizia assim: - Eita sô quanta alegria é "carga pra burro" feminha pra perfumá o mundo. Sempre reverente e sábia, na sua simplicidade. Nunca cobrava nada, mas sempre era obrigada a aceitar alguns presentes, de gratidão de quem foi socorrido. Assim, ganhava: farinha, frango, rapadura, balaio, quibano, porco, bezerro, novilho roupa, entre outras coisas. Além de uma porção de afilhados e "filhos de nascimento" que para o resto da vida lhe teriam respeito e gratidão, sempre-lhe pedindo a bênção, em qualquer ocasião, pois para estes e família, dona Davina não era qualquer uma, era a eterna "mãe de imbigo", ou seja, a parteira que lhe trouxe à vida, amparando em sua primeira queda, do sagrado paraíso do bucho materno, para as cores e cheiros, luzes e dores das estradas do mundo, cortando-lhe o umbigo, tomando-lhe nos braços, nessa hora de medo e horror que traumatiza o nascente, para aquecê-lo e aconchegá-lo nos braços maternos, devolvendo-o assim, ao conforto da mãe que o acolhe e alimenta dando-lhe de imediato o peito e o colo, símbolos mais sagrados do mundo, que reproduzem as feições do útero, esse paraíso irremediavelmente perdido no ato do parto.
Como sempre fizera com os demais filhos que agora seriam oito, contando o que nasceria em breve, Maria Tomásia ia parir sozinha. O marido tava na lida e não vinha pra acompanhar- lhe nessa hora. Isso não lhe trazia desconforto, ela sabia que João era mesmo assim, não afeito a essas coisas de mulher não. Assim, vinha em casa trazer as coisas e sumia pra roça no Boqueirão, onde tinha terra e plantava. Era bom marido, num deixava faltar nada, mas nessas horas ele preferia ser avisado depois de tudo corrido. Ai sim, ele vinha abençoar o herdeiro, tomando- o ao colo, beijando-lhe a testa, escolhendo o nome, etc. Mas durante as horas de parto ele gostava de estar longe. Sempre foi assim, é o jeito dele. Os demais maridos desse tempo, mesmo não podendo fazer muita coisa estavam sempre em casa nessas horas com a esposa, dando assistência e acompanhando tudo. Alguns até parto faziam. Não é que não soubessem fazer não, é que esse é um momento sagrado da vida das mulheres, a natureza reservou a elas esse momento. Foi capricho de Deus que a mulher desse a vida ao homem e dela ele cuidasse enquanto vivesse.
Existe aí nesse ato de parir uma poesia sublime. A mulher é a poetisa da vida, assim quis a natureza, que a empoderou com todas as faculdades e forças. Mulher não precisa de nada pra parir, pari naturalmente, pari poeticamente, com a poesia selvagem da natureza bravia, que se contorce, geme e grita tecendo a vida, que entre saliva e sangue, suor e gemidos escorre pelos seus lábios ganhando os lábios do mundo. Sempre foi assim! Desde que o mundo é mundo, que acontece assim e não estamos nós aqui por acaso ou capricho médico não, estamos aqui porque nossas ancestrais eram poetisas fortíssimas, poderosas parideiras.
Decerto que progredimos, ganhamos conhecimentos e técnicas e isso é bom, é necessário para dar mais qualidade, segurança, assepsia, maior qualidade de saúde e de vida conforme os padrões dos nossos dias. Mas não há razão, não sem uma real situação de risco, perigo pra mãe e filho, para que haja intervenção de parto artificial. Isso é superficializar a poesia divina, é empobrecer o parir, estigmatizar e enfraquecer a mulher em sua essência mais sublime.
E tem mais, há quem de longe, já desconfie que transtornos e medos, frieza e distanciamento, dificuldade de relacionamento, entre outros psicosofrimentos e doenças de nosso tempo, tenham suas origens, nesse momento, nesse ato sagrado do parto que fora artificializado.
Os partos artificiais, com seus mitos e inverdades, já são unanimidade ou estão quase se tornando. Isso em nome da praticidade, do lucro, da vaidade e das inverdades apreendidas. Em nome do não sofrer, da estética antiética e escalafobética, fóbica e cafona que faz desaparecer as mulheres poesia, as mulheres naturalmente potentes, poderosas parideiras de gente, que desde o nascer vive e sente, não teme viver, não teme sentir, poetisa e intérprete da natural poesia da vida, que torna a mulher mais mulher, pois não lhe furta o poder e faz o rebento mais potente, por nascer naturalmente, saudável, solto e livre pelo mundo.
Remédio é para o doente e não para quem teme adoecer. Para não adoecer é prevenir, precaver-se, se cuidar, pois já nos lembra o ditado, que é bom sempre guardar, que na vida sempre é melhor prevenir do que remediar, assim, parto artificial, deveria ser o que é, remédio para os casos de necessidade, não a unanimidade que já está se tornando...
... Enfim, chega dona Davina e o menino Pelágio e ela vai logo assumindo a casa, termina de dá cumê pra mininada e põe todos pra dormir. Chama a vó Mariazinha, põe à frente da cozinha e entra pro quarto onde Maria Tomásia já se encontra preparada. Contrações em alternância a cada instante menor, vão fazendo-a feito cobra de dor se contorcer, serpentiforme a dançar. A mulher é parideira, confia na companheira e na sua natureza, por isso ela não grita. Geme e se contorce, respira em descompasso, mas não se vê embaraço, nem medo nos olhos dela. A lamparina acesa, ofusca da noite a beleza que hoje é de lua cheia, a se exibir jubilosa pela fresta da janela.
As horas de dores correm, e dona Davina a socorre com presteza e dedicação, quando as massagens e caldos, os banhos e beberagens mostram sua solução, relaxam e causam calor aumentado assim, a dor e a intensidade da contração. Bacia de água temperada, nem pelando e nem gelada espera pelo bebê. No leito já preparado o corpo semideitado de Tomásia, sua e canta, em preces e ais indiscretos que lhe escapam da garganta.
Segurando a cabeceira e apoiada pela parteira ela pressente o momento. Num contrair extenuante que durou eterno instante de dor e força fazer, escuta o eco estridente de um choro renitente anunciando o bebê que acabava de nascer. Seu corpo extenuado, de suor e sangue banhado relaxa a desfalecer. Lágrimas banham-lhe o rosto, mas não são lágrimas de desgosto, são de alívio e emoção. O tremor e o frio ascende, e um gole de água ardente ali serve de solução. Enquanto dona Davina, com suas mãos benfazejas cortam o umbigo e prepara tudo, acolhendo o bebê, a mãe Mariazinha socorre Tomásia que vivencia pela oitava vez o milagre do nascer.
Dona Davina sorrindo diz seu jargão de parteira feliz pelo aparado, - eita sô, quanta alegria, é "burro pra levar carga", machinho do saco roxo, que por Deus é abençoado. Ainda sem muitos panos e pele superficialmente lavada, nos braços da mãe querida o rebento é acolhido para a primeira mamada. Mama como um peregrino esfomeado o menino tem potência no sugar, a mãe toda extenuava é rainha entronada soberanamente a reinar. Toda a beleza da vida, toda a poesia do mundo, concentram-se nesse segundo, neste quarto onde estão mãe e filho completando o milagre da vida, que vem se dando desde a fecundação.
O silêncio ali domina, Mariazinha e dona Davina, são estátuas bestificadas olhando a cena sublime que outra vez se repete, sendo inédita porém. Mãe e filho se conhecem, se conectam pelo toque, pelo olhar, pelo amamentar. Assim, sacramentam vínculos, que unem almas e escondem raizes, de uma maneira tão divina, que não se pode explicar. Por isso, tudo é silêncio e grande contemplação, uma espécie de oração, onde impera a natureza, sem nenhuma estranheza, a vida a sacramenrar, num ritual de poesia capaz mesmo de encantar.
No meio da sugeirada, pano, sangue, erva e raizadas, apetrechos de parteiras, bacia, faixas e panos, placenta, fumo e azeite é momento de limpar. Dona Davina completa o serviço, limpa banha e veste a mãe e o menino. A Mãe de Tomásia arruma a cama recolhe os restos do parto comemorando mais um neto que a vida veio lhe dar.
Tudo limpo e arrumado Tomásia toma um caldo, para se recuperar. Dona Davina comemora, querendo mesmo ir embora, para casa retornar, mas é alta madrugada, e assim, atende a comadre que insiste em seu pernoitar.
Exausta Maria Tomásia, adormece sossegada com seu filhinho a mamar. As outras deixam o quarto se abrigam na cozinha bem baixinho a conversar. Tomam cachaça com torresmos, um lanche na madrugada, depois da obra acabada é hora de descansar.
Eu que não dormi direito, curioso e teimoso que sou, caçei no rancho um jeito, da coisa observar. Sabia que alguma coisa muito estranha com mamãe ali estava a se dar. Mas era eu muito novo, sendo o quinto dos irmãos não dava pra imaginar, que naquela noite agitada, nossa vida tão pacata, mais um membro ia ganhar. Só soube no outro dia, quando com permissão de titia pude no quarto adentrar. Mamãe me abençoou, no canto da cama me mostrou um embrulho a dormitar. Ela me disse assim: - esse é seu irmãozin, que acabou de chegar. Confesso nada entendi, meio frustrado saí dali e fui pra vida brincar.
Dona Davina foi embora ficamos nós e vovó agora e a mamãe acamada com aquele embrulho de lado. Dois dias foram passados e então papai chegou para meu mundo alegrar. Aos poucos me adaptei e o irmão aceitei com a vida a passar. Mamãe logo se recuperou e a rotina voltou sem nada se alterar, o irmãozinho crescia e muitas vezes eu queria seus lindos olhos pegar, mas logo mamãe brigava, para isso semente bastava, meus dedinhos curiosos, daqueles olhos brilhosos tentar se aproximar.
Quantas memórias guardadas, parecia quase nada quando me pus a narrar. É que pra falar do parto, recordei amor e vida, revivi horas perdidas nos braços da emoção. E assim, percebo convicto que o parto natural é bênção pra toda a família. Já o parto artificial é feito no hospital, sem emoção, sem esse tipo de memórias que nos constrói e vinculam, com um bando de estranhos, tem um homem no comando e é um rito sem poesia. A natureza ali excluída, vê a mulher sua escolhida, vitimada enfraquecida, da vida anestesiada. E a poesia divina que dormia na menina é pelo médico amputada, em nome da praticidade e uma tal modernidade, civilidade e esterilizadora que esvazia o ser humano, esse momento profanando. Partos em escala de produção, agendados no balcão de uma casa de doenças. A vida perde a poesia, o nascer perde a essência e virá mercadoria e as dores no parto evitadas, sem generalizações e nem determinamos, vão solidificando o câncer do egoísmo e esfriando as relações. E as dores de que se fugia vão surgindo e ressurgindo, outras formas assumindo de transtornos e confusões.
Comentários
Postar um comentário