Leituras da Infância


Pensando com Ecléa

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 "Não se lê duas vezes o mesmo livro, isto é, não se relê da mesma maneira um livro. O conjunto de nossas ideias atuais, principalmente sobre a sociedade, nos impediria de recuperar exatamente as impressões e os sentimentos experimentados a primeira vez, (Bosi, Ecléa. Lembranças de Velhos. pp.23)."

Eis por que nunca reli, “Meu Pé de Laranja Lima”! Toda vez que penso neste livro de José Mauro de Vasconcellos, cuja leitura fiz aos oito anos na segunda série primária, no afã da descoberta maravilhante da leitura, reconheço sua importância para minha caminhada de leitor, pois ainda hoje ele figura como a leitura mais incrível que já fiz na vida.
Já havia pensado varias vezes em relê-lo, mas por inúmeros motivos desisti. Mas o mais insistente dos motivos, sempre foi o medo, medo de desfigurar em mim o fascínio que guardo da primeira leitura, essa experiência deliciosa e intraduzível.
Agora caminhando pelas “Lembranças de Velhos” na companhia de Ecléa Bosi, tenho encontrado reflexões importantíssimas que me levaram a exclamação, que abre o primeiro paragrafo deste texto.
Ecléa apoiada em grandes nomes da tradição francesa no estudo da memória, como: Maurice Halbwachs, Henri Bergson entre outros demonstra com uma variedade de argumentos que a memória é um mecanismo complexo.
Assim utiliza o exemplo da releitura para exemplificar que lembrar não é reviver, e refazer. Por isso quando relemos um livro que lemos na infância não repetimos aquela experiência primeira, mas experimentamos outra situação que dialoga com a primeira, mas que é distinta. Isso se deve a uma série de fatores dentre os quais estão, a capacidade critica, o contexto histórico-social e psicológico, etc. Sua atividade de ler está direcionada para outro fulcro, dada a sua idade atual, sua experiência sociocultural. E assim o que te marcou e fascinou na primeira leitura, quando jovem agora sofre uma desfiguração seja pela sua capacidade critica seja porque nem se quer tem força para chamar lhe a atenção no texto, por tudo isso tem se a impressão de que se está lendo um outro livro. Assim não se “re-vive a primeira experiência, mas se re-faz”.
Assim aplica à memória o conceito trabalhado, quando acessamos a memória pra mobilizar de lá as lembranças, não estamos revivendo o passado tal qual ele foi, mas o estamos reconstruindo a partir de uma complexa rede de fatores, que envolvem a motivação, forças ideológicas, memória individual e coletiva, vivacidade da lembrança e a capacidade de narrativa de quem lembra. Tudo isso influência sobre a lembrança que reconstitui determinado passado condicionado a subjetividade de quem lembra e narra. Chama ainda a atenção citando Goethe, que nenhuma lembrança da infância é de fato claramente uma lembrança individual, pois confundimos muitas vezes nossas lembranças, com o que foi dito a outros... “Evidenciando aí o caráter não só pessoal, mas familiar, grupal e social da memória.
Apoiada em Stern, Ecléa termina o argumento dizendo: “... As lembranças são refeitas pelos valores do presente...”.
De volta ao livro Meu Pé De Laranja Limas. Aos que não tiveram o prazer de ler em sua infância esta obra que me é tão cara, cumpre dizer que este livro conta a história de um menino de cinco anos chamado Zezé, que pertencia a uma família muito pobre e numerosa. Zezé tinha muitos irmãos, a sua mãe trabalhava numa fábrica, o pai estava desempregado, e assim a família passava por muitas dificuldades. As irmãs mais velhas tomavam conta dos mais novos; por sua vez, Zezé tomava conta do seu irmãozinho mais novo, Luís.
Zezé era um garotinho muito interessado pela vida, adorava saber e aprender coisas novas, novas palavras, palavras difíceis que o seu tio Edmundo lhe ensinava. Contudo, passava a vida a fazer traquinagens pela rua, a pregar peças aos outros e muitas vezes acabava por ser castigado e repreendido pelos pais ou pelos irmãos, que passavam a vida a dizer que era um mau menino, sempre a fazer maldades. Todos estes fatores e o fato de não passar muito tempo com a mãe, visto que esta trabalhava muito, faziam com que Zezé, muitas vezes, não encontrasse na família o carinho e a ternura que qualquer criança precisa. Compensando essa carência na relação que estabelece com sua irmã Glória, que ele carinhosamente chama de “Godóia”.
Ao mudarem de casa, Zezé encontra no seu quintal da sua nova moradia um pequeno pé de laranja lima, inicialmente a ideia de ter uma árvore tão pequena não lhe agrada muito, mas à medida que este vai convivendo com a pequena árvore e ao desabafar com esta, repara que ela fala e que é capaz de conversar consigo, tornando-se assim o seu grande amigo e confidente, aquele que lhe dava todo o carinho que Zezé não recebia em casa da sua família.
Resguardadas as diferenças geográficas e contextuais, o menino Zezé era realmente o retrato de minha infância e suas aventuras, traquinadas e desventuras ecoavam em mim com muita força. Um auto reconhecimento na pureza, simplicidade, sofrimento, pobreza, devaneios e anseios de Zezé, tiveram o vigor capaz de imortalizar em minha memória a leitura feita a mais de duas décadas. E em função de não encontrar se disposto a abdicar a estas lembranças que trago, da primeira leitura, tenho sido reticente na releitura deste livro. Ecléa vem com muito vigor e propriedade forçar-me a fazer este caminho de reflexão do que é a lembrança, de como a estrutura sociocultural imperam no ofício de lembrar e como lembrar e re-fazer.

Referências Bibliográficas:
VASCONCELOS, José Mauro de. O Meu Pé de Laranja Lima. 12 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1969.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade, Lembranças de Velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.




Joaquim Teles/22/01/2012

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